Tudo começou quando sentamos lado a lado no ônibus e descemos no mesmo ponto, voltando da faculdade. Foi ali que recebi algum crédito, afinal, a minha dileta amiga não poderia manter as suspeitas de que eu era uma “garotinha metida” após estar comigo dentro daquele lotado meio de transporte.
Passadas muitas outras descidas de coletivo juntas, evoluímos na amizade e na cumplicidade. Ela estava certa de que poderia contar comigo. Mesmo quando não mais utilizávamos aquele recurso para voltar da faculdade. Definitivamente, eu era da sua turma.
Meu carro era condizente com a sua filosofia. Podia-se escolher: entrar pela janela e continuar sentindo o ventinho batendo no rosto ou, adotar uma postura padrão, entrando-se pela porta, abandonando qualquer chance de se abrir as janelas. Entrávamos pela janela! Também não era importante o fato de trafegar a álcool, ainda que necessário fosse se fazer contas pra saber quando ele iria acabar, o quê brincava com os poucos dotes matemáticos daquela que o pilotava, deixando-a e aos seus aventureiros companheiros, muitas vezes e outras, a perambular com aquele saquinho que nos atende nestas situações. Mas, a vida seguia, e o importante era não se entregar ao sistema.
Sin perder la ternura jamás, não era o fato de termos que nos superar ao conseguir jantar em São Paulo com míseros R$1,50 (umrealecinquentacentavos), nos idos de 1996, naquela charmosa esquina de Santa Cecília, que iria nos fazer desistir de ouvir as palestras, em italiano, idioma que nos era perfeitamente familiar (sabíamos mandar beijos), daqueles constitucionalistas famosos, no salão nobre do Largo da São Francisco. Não nos importava se a nata estudantil goianiense, vinha e voltava de motorista e se quedava na Vila Nova Conceição.
Seguimos na luta. Com algumas derrotas. Não consegui ver ao Acústico dos Titãs ao me roubarem o vale-transporte que serviria de moeda para comprar o ingresso. Em solidariedade, minha dileta amiga dedicou suas férias de julho a me acompanhar ao litoral piauiense, para o qual rumamos de ônibus, durante três agradáveis dias. Não havia nada mais revolucionário.
Hoje, depois da posse do Presidente Lula, no primeiro dia do ano de 2003, de chorar, de ter aplaudido o José Dirceu, de termos queimado algumas bandeiras estadunidenses em praça pública, de boicotarmos as redes supermercadistas internacionais, de entoarmos protestos de “Fora Bush”, “Fuck you Bush”, dentre outras delicadezas, aplicamos outras estratégias em nossa revolução.
Calçadas com o velho e bom All Star sujo pregamos nossa luta contra o sistema entre as ruas Garcia D’ Ávila e Aníbal de Mendonça. Sentamos nos cafés da Oscar Freire para ouvir de perto o que dizem todas aquelas fúteis madames dos jardins. Compramos carro zero quilômetro para...ah, para evitar o desemprego daqueles milhares de empregados na indústria automobilística. Como poderia eu me esquecer dessa motivação!
Nesse histórico de lutas por ideais, algo, contudo, parece não se encaixar. É verdade que nossa dileta amiga escolheu um roteiro adequado para sua missão de férias. Vai ao Peru ver o que se construiu com o movimento da izquierda revolucionária, entristecer-se com os relatos dos massacres aos índios e com a destruição das riquezas Inca. Mas, ao checar seu roteiro, constatei que não fará a caminhada tradicional, trocou-a por um vôo doméstico bem mais simpático. Em Macchu Picchu, albergues da juventude? Não, um voucher para um cinco estrelas. Hãn? Sim, um voucher para um cinco estrelas! Com direito a ofurô, hidromassagem e vista panorâmica para as montanhas.
Alguns se atrevem a explicar o que há por trás disto. Especulações. Boatos. Disse-que-disse. Qual seria a reação desta companheira à nossa dileta amiga? Uma única: querida, não se apaixone por um índio! Mas, sendo isto inevitável, procure uma oca contemporânea, dessas equipadas, onde a gente possa assistir aos seriados da televisão fechada. E, por favor, mas por favor mesmo, em nome de todas as lutas, não se entregue àquelas flautas, não traga em sua mala nenhuma daquelas peles e tudo será perdoado.
E a revolução? Acabou? Não. Agora começa uma outra, a mais difícil: viver sem culpa! Duvido que seus ideais serão afogados numa banheira de hidromassagem, que um ofurô com vistas para as montanhas e ruínas te impeçam de reunir alimentos e distribuí-los, dia a dia, a caminho do trabalho, aos meninos da ponte, com lágrimas nos olhos. Sin perder la ternura jamás!
E, viva la revolución! Ao menos, a que tira de nós a insuportável culpa de ser feliz!
Hasta la vista, hermana!
15 comentários:
Bom, eu chorei... Imagino só a própria revolucionária... Lindo de morrer! E sabe que eu nem me lembrava do motorista? Pior que assim não posso nem reclamar da pecha de nata estudantil... Beijos!
E como reclamar? Até presente da dona da casa vc ganhou? Lembra? Em contrapartida perdeu um dos acontecimentos mais engraçados da minha vida e da nossa dileta amiga. O episódio da contenção do riso com as toalhas! Isso não tem preço!
Quando criança queria ser bailarina. A veia revolucionária me apareceu somente mais tarde, nos tempos acadêmicos.
Nos anos impúberes admirava as dançarinas, sua leveza, flexibilidade e incríveis rodopios.
Dei os primeiros passos, a fim de perseguir o sonho. Desisti. Muita disciplina e dedicação. Nenhuma apresentação em público.
Hoje, adulta, além das habéis dançarinas, admiro vc, nova bailarina que rodopia, leve, delicada, amante das palavras, obedecendo cega o novel ritmo poético que lhe anima. Agradável novidade!
Não resisto. Admiro e amo como nunca as bailarinas.
Insensível Rivotril. Leio e releio seu texto e a emoção só aumenta, porém, contrariando todos os precedentes, não me debulho em lágrimas, apenas tenho os olhos (verdes) cheios d'água.
A propósito, CHE é muito apropriado! A sua cara!
Bendito Rivotril! J� chorastes demais! Que ele continue contrariando os precedentes. Agora, s� hoje eu entendi porque somos irm�s de alma. Foi esse desejo frustrado de ser bailarina! hahaha Mas a gente dan�a um funk como ningu�m...rs
Vou falar uma coisa aqui, mas, por favor, não me interpretem mal, eu amo as bailarinas e as amigas das bailarinas, dentre as quais eu me incluo... Mas a questão é que hoje cheguei a uma conclusão - na verdade, eu já havia concluído isso há muito tempo mas, enfim, apropriado falar disso agora. Muito lindo isso de irmãs de alma, de todo mundo estar assim tão inspirado, mas não é tão legal assim ser amiga das pessoas com quem a gente tem tanta afinidade. Porque se a afinidade existe, existe até onde o negócio empaca. E isso não é bom, porque aí, não tem ninguém perto pra fazer a gente desempacar, de maneira que ficamos todas atoladas juntas! É uma apologia à nossa desunião: vamos ficar amigas de pessoas diferentes da gente, pelo menos por um tempo, pra gente aprender a resolver algumas encrencas, alguns truques fatais? Depois, a gente volta ao normal, com muito materiaa pra trocar experiência... Que tal? Precisando a gente tá, e muito!
Que horror! Uma apologia � desuni�o s� para aprender truques de como n�o cair em pegadinhas amorosas? Tsc, tsc...Lucr�cia, s� em outra encarna�o pra gente mudar, filha! N�o adianta, n�o! Nem ficando amiga da Bebel...rs
Mas, de toda forma, eu me candidato à amizade do Marcello Antonny, ou melhor, do seu personagem na novela. Apropriado, não?
sabe, nunca me considerei revolucionária. aliás, acho que nunca fui nem quis ser. eu queria mesmo era fingir que fazia parte da nata estudantil goianiense, que andava de motorista, se hospedava na Vila Nova Conceição e freqüentava a Oscar Freire e o shopping Iguatemi. mas, felizmente, não foi isso que a vida me reservou. e hoje me vejo às voltas de explicar para uma criança de 4 anos incompletos que ela não precisa de mais brinquedos, simplesmente porque tem criança que não tem brinquedo nenhum. de repente, me vi, depois de velha, sendo, hã.., revolucionária?
aí vai mais uma letra tirada do meu universo infantil....
"nem a água do mar
nem da máquina de lavar
pode separar dois amigos..."
Caramba, esse universo infantil está rendendo muito bons comentários.Rosinha, que venha logo a samba-lelê, agora como nome da lojinha de livros infantis. Serei sua consumidora, ainda que sem crianças.
Bailarina, mudam os cenários, as companhias (em alguns casos infelizmente!), o paladar para os vinhos (de Chapinha a Alma Viva)... Mas os propósitos dos verdadeiros revolucionários continuam os mesmos! Perfeito o texto!
Limón y sal,
Primeiro, muito engraçado como os codinomes são perfeitamente adequados a quem os utiliza... Rs Que saudade! És também dessa turma de revolucionários, não? Mudam os cenários, as companhias (momentaneamente), mas a sociedade alternativa estará sempre em nossos corações! Afinal de contas, acho q continuamos a manter os sonhos daquela época em que escrevíamos as letras das músicas no caderno. Muitos beijos!
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